Em entrevista ao ‘Jornal do Brasil’, Galinho abre o verbo e o coração
Henrique de Almeida
São 60 anos completados neste domingo (3). Para os torcedores
do Flamengo e amantes do bom futebol, seria preferível que fosse eterno
o auge de Arthur Antunes Coimbra com a camisa 10 da Gávea e da Seleção,
como diz a letra do hino de Jorge Benjor.
Em entrevista ao Jornal do Brasil, Zico falou por mais de uma hora sobre as dificuldades do início da carreira, histórias do time multicampeão da década de 80 e os dramas que passou durante seus 46 anos dedicados ao futebol.
Zico começou a entrevista falando sobre a nova fase que vive na vida,
de descanso e reflexão após seis décadas. Ele se definiu como estando
“na idade da curva”, e definiu como prioridade aproveitar a infância dos
cinco netos: Arthur Neto(filho de Arthur Júnior), Antônio e Felipe
(filhos de Thiago Coimbra, filho caçula de Zico), Gabriel e Alice(filhos
de Bruno Coimbra).
“É legal fazer isso, de brincar e sair com meus netos, porque eu não
pude fazer isso muito com meus filhos. Quero devolver isso pra eles, e
meus filhos sempre entenderam essa questão toda. E vamos combinar que
quem viveu o tempo todo no esporte, na competição, tem que estar bem
para poder acompanhar de maneira saudável o crescimento dos meus netos.
São quatro homens, então a tendência vai ser de futebol”, diverte-se,
lembrando de Felipe, neto mais velho:
“Ele tem cinco anos agora e está apaixonado por futebol, quer jogar e
depois vai andar de bicicleta, brincar no parquinho. Tem que ter
disposição pra não deixar nenhum netinho com inveja também”, analisa
ele, com um sorriso no rosto.
Infância
Zico
já teve essa idade, e passou pela infância apaixonado pelo
Flamengo(graças ao pai, Seu Antunes, definido como “o maior comunicador
da marca Flamengo na história”) e pelo futebol nas ruas de Quintino
Bocaiúva, zona norte do Rio. Aos 14 anos, durante um torneio em que
vestia a camisa do Santos no clube Ríver, Zico fez 10 gols na vitória de
seu time por 14 x 4. Celso Garcia, radialista já famoso no Rio e
rubro-negro fanático, levou-o para treinar na Escolinha do Flamengo.
Zico lembra que esse fato impediu uma possível ida para o América, clube
onde já jogavam seus irmãos, Edu e Antunes Coimbra.
“A primeira camisa que eu vesti foi a do América, num jogo do
Infantil no Andaraí. Na semana que eu ia começar os treinos no América,
aconteceu isso tudo. Eu decidi, pedi licença ao Edu e ele disse: vai
onde você achar que deve ir, a carreira é sua”, relembra Zico, que quase
foi pro Vasco ainda no final dos anos 60. Ele conta que a rotina de
sair de Quintino de madrugada, treinar na Gávea pela manhã e estudar no
colégio Rivadávia Corrêa, na Central do Brasil, além da academia à
noite, estava sendo dificultada pelo próprio Flamengo:
“No meio dessa correria toda, eu tinha que almoçar no Flamengo, e o
clube não queria me dar esse almoço. Meu pai se aborreceu e me tirou do
clube. O Célio de Souza, meu técnico na escolinha, tinha ido pro Vasco e
queria me levar. Quando foi falado isso, o meu primo soube, alguém
falou com o George Helal (presidente do clube). Ele me bancou
pessoalmente o almoço e as passagens. Aí eu voltei pro Flamengo”,
relembra Zico, que considera difícil que a ida para o maior rival
realmente se concretizasse:
“Seria difícil eu ir para o Vasco porque meu pai tinha muito ódio do
Vasco. Devido ao que aconteceu na vida dele, dele quase ter sido goleiro
do Flamengo e o chefe dele na padaria onde trabalhava ter dito que, se
ele jogasse futebol pelo clube, estaria na rua. Ele precisava do
dinheiro e ficou por lá, mas tomou muito ódio do Vasco”, ri Zico.
Enquanto tentava a vaga no time profissional do Flamengo, Zico teve a
primeira grande decepção na carreira: a não convocação para as
Olimpíadas de 1972 deixaram o jogador muito decepcionado com o futebol.
Sobre a possibilidade de o problema do irmão Nando com a Ditadura
Militar ter causado a não convocação, assim como ter visto o irmão
preterido na convocação para a Copa do Mundo de 1970, Zico pensa que a
origem do problema é outra:
“O problema maior aconteceu com o meu irmão Antunes, que não foi
convocado para a seleção Olímpica de 1964 porque o meu pai, seu Antunes,
não aceitou assinar um contrato de gaveta com o Fluminense e, com isso,
o cara que era militar, do Fluminense e da CBD, disse que ele também
não iria pra Olimpíada. Em 1969 o Edu não foi, e tudo era comandado por
militares. Se tivesse que ter acontecido alguma coisa, eu nem seria
levado pro Pré-Olímpico de 1971. Não havia sentido me tirar por causa
disso quatro ou cinco meses depois. E não foi só comigo, mas minha
família estava escaldada por conta de todas essas histórias”, disse ele.
Títulos, dramas, glórias e histórias
Zico tornou-se titular do Flamengo no início de 1974, e teve um ano
muito bom, com direito a título carioca, o prêmio da Bola de Ouro da
revista Placar como melhor jogador do brasileiro e a quebra do
recorde de gols em um mesmo ano pelo Flamengo, com 49 gols. Uma marca
que, segundo Zico, foi quebrada “contra a vontade”. “Tinha que ser logo
do meu ídolo Dida (46 gols em 1959)? Contra o Vasco que eu quebrei essa
marca, e mexeu muito comigo. Cresci vendo o Dida jogar e arrebentar”,
rememora, saudoso. A Copa de 1974, para ele, era uma chance que merecia
pelo futebol praticado naquele ano. A base do time, porém, foi a campeã
de 1970. Zico compara o ocorrido à não convocação de Neymar e Ganso em
2010. “Se Seleção fosse aquela coisa só de momento, eu merecia estar lá.
Foi mais ou menos o que aconteceu com o Neymar e o Ganso em 2010. Eles
tinham que estar lá, não era fogo de palha nem foguete, mas resolveram
não levar”, analisa.
Em 1976, um jogo simbólico para a carreira de Zico. A final da Taça
Guanabara rendeu o último jogo junto com o irmão Edu no Flamengo, o
último gol do amigo Geraldo com a camisa do Flamengo e… um gol perdido
na decisão por pênaltis. “Talvez tenha sobrado autoconfiança e faltado
concentração. Foi uma lição. Ainda bem que devolvi com juros e correção
nos anos seguintes. Imagina se eu não bato, bate outro e perde, imagina,
iam me chamar de pipoqueiro”, defende-se Zico.
O
título carioca de 1978, com participação de Zico no gol histórico de
Rondinelli deu início à era mais gloriosa da história do Flamengo, que
durou até 1983 e trouxe três títulos brasileiros, quatro campeonatos
cariocas, uma Taça Libertadores e um Mundial Interclubes. Uma história
curiosa mostra a importância de Zico naquele grupo, e aconteceu durante a
fase final do Brasileiro de 1980, o primeiro conquistado pelo clube:
“Nunca joguei sem contrato. Naquela época, o pessoal deixava para
renovar o contrato na última hora. E o meu contrato, em 1980, terminava
dois dias antes da final. A final era 1 de junho, e meu contrato
terminava dia 30 de maio. Ganhamos o jogo contra o Coritiba fora de
casa, e depois do jogo eu reuni os jogadores e o Coutinho (Cláudio,
técnico do Flamengo) e falei: meu profissionalismo está acima de
qualquer coisa, o Flamengo não renovou até agora. Mas eu gostaria de
contar com a ajuda de vocês. Eu vou jogar na final, mas não gostaria que
isso saísse daqui. Para o Flamengo e para a imprensa eu vou dizer que
não vou jogar se o Flamengo não renovar o meu contrato. Mas vocês podem
ter certeza que jogar eu vou. Eles entenderam e assim foi feito. Não
tinha jogado o primeiro jogo”.
Venda polêmica e infelicidade
Após o título brasileiro de 1983, em final com mais de 155 mil
pessoas no Maracanã contra o Santos, a surpresa: Zico foi vendido para a
Udinese, da Itália. O Galinho relembra com tristeza sobre toda a
negociação com o clube italiano, encabeçada pelo presidente do clube à
época, Antônio Dunshee de Abranches:
“Ele foi um bom presidente, mas ficou marcado como o cara que me
vendeu. Ali, era a útima oportunidade do clube de receber dinheiro em
troca do meu passe. Naquela época, a lei do passe dizia que pra você
ficar livre, tinha que ter 32 anos ou 10 de clube, e isso eu tinha. Se
eu renovasse, ia sair sem custo em 1985. Então criou todos os artifícios
pra que eu fosse vendido, e jogou para a imprensa que eu estava
dificultando a negociação. Acho que ele foi infeliz na forma que tratou o
caso, fazer o que ele fez ficou chato”, analisa.
Após um período de dois anos na Udinese, Zico brigou com o presidente
do clube e pediu para voltar ao Flamengo. Após cinco jogos em lua de
mel com a torcida rubro-negra, veio o jogo fatídico contra Bangu pelo
Campeonato Brasileiro. O empate em 0 a 0 foi deixado de lado pelo lance
que mudou a trajetória da carreira de Zico:
“Ele
foi mal orientado, tinham que me parar. Só que o louco do Márcio fez o
que fez, e quase inutiliza a minha carreira, mas tive força suficiente
pra encerrar minha carreira jogando. Não nos encontramos depois de 1987,
e coitado, deram uma porrada nele também (em 1988) e ele se aposentou”,
disse Zico, com expressão séria no rosto.
Em 1986, mais um pênalti no caminho de Zico: na partida contra a
França, na Copa do Mundo, o Galinho começou no banco, e entrou já dando o
passe para Branco sofrer o pênalti. Ele, que havia deixado Careca bater
um pênalti na goleada de 4 a 0 sobre a Polônia, se defende dos que o
consideram culpado pela perda da vaga na semifinal daquela Copa.
“Não me sinto responsabilizado pela perda da vaga, em nenhum momento.
É uma chance perdida, mas um time que quer ser campeão tem que estar
preparado pras dificuldades. Eu estava treinado. Desde o jogo contra a
Polônia, um dos melhores aproveitamentos era meu e do Júlio César. O
Sócrates também vinha bem, e todos perdemos. É do jogo”, defende-se
Zico.
Título dramático
O Campeonato Brasileiro de 1987, vencido pelo Flamengo, é o maior
exemplo de superação da carreira de Zico. O meia rompeu os pontos de uma
cirurgia no joelho no último jogo da primeira fase, contra o Santa
Cruz. Desde então, as dificuldades com o joelho avariado pela contusão
em 1985 começaram a aumentar:
“Sabia que ia ter que fazer a cirurgia. Depois de 45 minutos, meu
joelho bloqueava e eu não conseguia movimentar. Eu não podia treinar
mais. Eram jogos quarta e domingo, então eu joguei contra o Atlético no
sábado e descansei domingo, segunda, terça um pouquinho, jogava quarta…
passei dias sem treinar pra jogar a final contra o Inter. No dia
seguinte ao título, fui fazer cirurgia. Mas o título já estava ganho, a
missão já estava cumprida”, satisfaz-se Zico, lembrando que, daquele
time do Flamengo, só Ailton não serviu a Seleção Brasileira, sendo que
cinco deles foram campeões em 1994: Jorginho, Aldair, Leonardo, Bebeto e
Zinho.
Fim de carreira
Em 1989, Zico fez uma promessa a si mesmo: seria o último ano da
carreira. As dificuldades para ele, que gostava de treinar, começavam a
ficar insuportáveis. “Fiquei desanimado, com receio de fazer algo mais
forte, sentir uma lesão no jogo.Terminei mesmo na final contra o
Botafogo no Carioca. Mas como o Gilberto Cardoso Filho (presidente)
vendeu o Bebeto, ele me pediu pra ficar lá um tempo, mas eu pedi algumas
datas para organizar minha despedida”, conta ele. O adeus aconteceu em 6
de fevereiro de 1990. “O Maracanã foi palco daquilo tudo. Era
necessário que fosse ali, e foi na hora certa. Esse estádio era a minha
segunda casa, me localizava fácil ali. Não é á toa que fiz 333 gols no
estádio. E olha que eu não conto gol em Jogo das Estrelas, hein”,
diverte-se o Galinho.
Bronca com Patrícia
Zico não esconde sua mágoa com Patrícia Amorim, presidente do
Flamengo à época de sua atuação como dirigente de futebol do clube,
entre junho e setembro de 2010. Para ele, a presidente “se escondeu” no
trato com ele e revelou que o motivo maior da crise, um suposto
favorecimento a atletas do CFZ, era na verdade um acordo que tinha sido
assinado pela própria Patrícia Amorim:
“Estavam na mesa o Rafael De Piro(diretor jurídico), Marcos Braz
(vice de Futebol), Michel Levy (vice de finanças), o Bruno (empresário e
filho de Zico) e eu, como presidente de honra do CFZ. O mínimo que ela
poderia ter feito era dizer: quem assinou fui eu. E ela se escondeu. O
De Piro chegou a sugerir a alteração da data do documento. O vice
jurídico do Flamengo fazendo um negócio desses! Foi uma coisa
direcionada pra continuar o que já vinha acontecendo lá dentro do
Flamengo. Isso ai foi um ato indecente, foi premeditado”, dispara Zico,
que não concorda que teria sido ingênuo quando assumiu a posição dentro
do Flamengo.
“Não é questão de ser ingênuo. Queria ajudar. A Patrícia, quando era
nadadora, cansou de pedir para ajudar nas rifas para recuperar a piscina
do clube, e eu cansei de ajudá-la. E achei que ela, como atleta,
poderia mudar alguma coisa. Mas fazendo tudo o que fez, fica aquele
papo: “Tá vendo? Atleta só serve pra ser atleta”, lamenta o Galinho.
O negócio entre Flamengo e CFZ consistia em o rubro-negro utilizar as
instalações do CFZ e na facilidade de utilização da estrutura do CFZ
tanto para recuperar jogadores afastados do elenco quanto para contratar
algum atleta que estivesse se destacando no CFZ. Zico conta que a
situação da base, quando chegou ao Flamengo, era lamentável:
“O Flamengo era barriga de aluguel, tinha empresário com 14 jogadores
no elenco da base. Tinha titular que nem pertencia ao Flamengo, e a
parceria foi para mudar isso. Quando esse contrato foi feito, eu não era
nem presidente do CFZ nem nada no Flamengo. O Flamengo pagava um
aluguel de 8 mil reais que não pagava nem a luz daqui. E se fosse o
contrário, jogadores virem pra cá, se o CFZ conseguisse alguma
negociação, só ai o CFZ tinha direito a metade”, explicou o Galinho, que
relatou que após o pedido de demissão, se reuniu com todos os
jogadores, a comissão técnica e a presidente.
“Disse tudo o que queria dizer e mais um pouco. Ela poderia explicar o
lado dela, dizer o que pensava sobre tudo aquilo, e não me disse nada.
Abaixou a cabeça e ficou quieta. “O que ela disse depois sobre mim não
importa, ela tinha que falar frente a frente comigo”, disse Zico, que
ainda provocou:
“Quem causou mais prejuízo ao Flamengo? Eu, que cheguei lá sem nenhum
atacante e tentei fazer contratações com o que tinha no mercado na
época, ou ela, que contratou o Ronaldinho Gaúcho? Não dá para dizer que a
contratação do Ronaldinho foi um sucesso. E eu no Flamengo fui colocado
para Cristo”, analisou ele.
Assim que a entrevista se encerra, no entanto, a indignação de
poucos segundos antes se transforma no sorriso do garoto criado no
subúrbio, do jogador forjado na Gávea e que fez do Maracanã, do Brasil,
do mundo, um palco de sua glória. Uma glória que, apesar da estátua do
ídolo que hoje repousa na Gávea, é pouco para representar a obra do
Galinho de Quintino no futebol.
Nenhum comentário:
Postar um comentário