Por Marcos Sergio Silva, da PLACAR
09/05/2013, às 09h00
Zico, depois de 2 horas de conversa, estica as pernas e reclama do
joelho esquerdo que distribuiu dores aos torcedores na década de 1980.
“São seis operações, pô!” A dor não alivia os alvos: Telê, Zagallo, o
Iraque e os clubes que não tiram o olho dos craquinhos do CFZ
PLACAR, há 33 anos, imaginou o Zico com 50 anos. Hoje você tem
60. Se você olhar a foto hoje, você está melhor que a gente pensava
(risos)...
Foi o maquiador, né? E o maquiador era um fera da Globo na época [o
polonês Eriç Rzepecki, morto em 1993]. Pior que ele me botou com bigode
[risos]! Mas naquela época a pessoa de 50 anos não ficava muito longe
disso. Hoje o homem se embeleza muito mais. Mas eu nunca mexi em nada. O
máximo que fiz foi usar xampu (risos).
Você passou por várias transições, do Zico torcedor até o maior craque do Flamengo. Como elas aconteceram?
Eu era um cara apaixonado pelo Flamengo por, dentro de casa, ter um pai
louco pelo clube. E ia aos extremos, como colocar a bandeira do
Flamengo acima da brasileira [na casa de Quintino]. Ele teve a atenção
chamada pelo meu professor de Moral e Cívica. O cara foi tomar
satisfações, e o meu pai falou “na minha casa mando eu”. Eu joguei em
1972 a final dos juniores e depois fui pra arquibancada vibrar com o gol
do Paulo César contra o Vasco [vitória por 1 x 0]. Na época, eu não era
conhecido. Podia ir ao jogo, ninguém sabia quem eu era.
Imagina sua carreira sem o Flamengo?
Não. Não tinha outra inspiração para ganhar dos adversários. Queria
ganhar como torcedor. O Botafogo, mesmo. O [goleiro] Manga dava
entrevista falando ‘vamos ganhar do Flamengo, já gastei o bicho’. Ficava
puto.
Você tinha uma rixa especial pelo Botafogo, não?
Tinha! Era por causa do Manga, pô. Eu ia ser o único que estaria nos
dois 6 x 0 [Botafogo 6 x 0 em 1972 e Flamengo 6 x 0 em 1981]. Em 1972,
eu estava concentrado e, quando chegou o dia, o Zagallo me tirou até do
banco e fui pra arquibancada. Quando estava 3 x 0, saí. No jogo de 1981,
eu era quem mais queria por causa da bandeira de 6 x 0 que eles
colocavam lá, em frente ao túnel. Eu falava: “Um dia vocês vão tirar
isso daí”.
Foram muitas as gerações formadas na Gávea, o que valeu a frase “craque o Flamengo faz em casa”. E aí, craque o Flamengo ainda faz em casa?
Eu me sinto satisfeito com essa geração, porque eu organizei a base. As
pessoas que estavam lá não sabiam o que faziam — a não ser a comissão
técnica. Eu montei um organograma: o diretor, o diretor-supervisor, o
coordenador, quem vai dar satisfação a quem. Eu levei apenas quatro
pessoas pra lá do CFZ: o técnico, o preparador físico, o auxiliar e o
coordenador das duas categorias de mirim, um cara que revelou um monte
de gente do futebol de salão.
Os jogadores, os próprios técnicos vinham até aqui [o CFZ] escolher. O
[Fernando] Vanucci, técnico campeão invicto do Estadual [sub-17, em
2010], que formou essa geração do Thomás, Adryan, Rafinha, Lorran,
Muralha, Romário, Mateus, Pedrinho, Digão, todos esses eram desse time. O
Jádson, do Botafogo. É lógico que eles conheciam os garotos daqui. Vai
falar o que disso? A gente estava se estruturando. Uma das coisas boas
que a Patrícia [Amorim] me ajudou a fazer foi acabar com essa coisa de
jogadores de base sobre os quais o Flamengo não tinha percentual nenhum.
De todo jogador do CFZ que vai pro Flamengo, o clube já tem 50%, como
tem hoje do Rafinha. A gente começou a ter atrito com empresários que
davam dinheiro para o Flamengo, que estava na pendura, e quando chegava
na base os caras botavam quem eles queriam. Tinha empresário que tinha
14 jogadores no profissional.
Você fala do Eduardo Uram?
É um deles [risos]... Ele veio falar comigo: “A gente tem que discutir
contrato”. “Quem são os jogadores?” “Ah, é esse, esse.” “Pô, o time
inteiro do Flamengo é teu?” Mas não é porque é empresário de 14 que vai
ter privilégio.
Você é dono de um clube de formação de jogadores. Dá para deter a infiltração dos agentes?
Não tem como. Eu tentei abrir uma empresa, do meu filho, e através dela
fazer os contratos com os jogadores. Mas é um custo muito alto. Se você
fizer um contrato com um garoto de 16 anos, por mais que ele seja bom,
você vai dar 2000, 3000 reais [de salário]. Tu não vai botar 50000.
Então, se o garoto estourar com menos de um ano de contrato, se outro
vier aqui e pagar [uma salário melhor], leva.
Mas é um trabalho difícil, de separar o joio do trigo.
Anteriormente havia um tratado de ética entre os clubes, de não pegar
jogador formado em outro. Hoje não existe mais isso. Você não vê hoje
muitos clubes fazendo força pra formar. Todo mundo tá pegando de outros
lugares. Eu tenho minha parceria com o CFZ de Juiz de Fora. Dois
jogadores [levados por outros clubes] foram para a seleção sub-17 e nem
disputam campeonato: o Igor, do Cruzeiro, e o Wallace, do Flu. Sabe quem
é esse? [aponta uma foto] É o Thomás. Não recebemos nada. O Thiago
Alcântara, do Mazinho, passou aqui. Tivemos que botar numa categoria
acima porque pegava a bola e driblava todo mundo. O Rafinha trouxemos
com 14 anos. Ele foi para o Flamengo e continua morando no CFZ. Talvez o
clube não acreditasse muito e não arrumava um lugar pra ele morar.
Falando de seleção: aquela Copa de 1978 foi estranha. Teve a intervenção do almirante Heleno Nunes (então presidente da CBD, que anunciou as substituições de Zico, Edinho e Reinaldo)...
Aquilo foi feio. Eu fiquei muito chateado com o Coutinho [Cláudio
Coutinho, então técnico da seleção e do Flamengo]. Quando acabou o jogo
da Espanha, o Heleno Nunes deu entrevista dizendo que tinha que entrar
Jorge Mendonça, Roberto Dinamite e Rodrigues Neto. Chega no dia
seguinte, o Coutinho chama o Edinho, o Reinaldo e eu no quarto dele.
Quando acabou a conversa, eu falei: “Você é meu treinador no Flamengo,
não precisava falar isso. O presidente deu uma entrevista antes falando
quem ia sair. Você não tem que dar satisfação. Mas a gente merecia mais
respeito, e não saber pelo jornal que vai sair”.
Você sentiu como uma traição?
Não, senti como uma imposição do chefe mesmo.
Em algum outro momento você viu um dirigente pesar tanto assim numa decisão?
No Iraque, sim. Chegaram a convocar atletas. Duas vezes cortei gente da delegação.
Afinal, o que o atraiu no Iraque?
O Edu [irmão de Zico], quando foi pra lá, na época do Saddam, os caras
davam tudo. O cara que foi intérprete veio até o Brasil pra pegar ele de
novo. O Edu disse que não queria, só se eu fosse com ele. Cheguei lá e
faltavam cinco dias para a estreia nas Eliminatórias da Ásia. O material
humano iraquiano, se tivesse estrutura, ninguém ganhava deles. Eles são
diferentes, em termos de biótipo, de qualidade técnica. Mas o
campeonato é amador. O meu estádio aqui [o pequeno Antunes, no Rio] é um
Maracanã perto do deles. E não tinha lugar nem pra seleção morar. A
Fifa liberou Irbil [interior do Iraque]. Mas deu confusão num jogo e a
Fifa vetou. [Na Eliminatória] perdemos o primeiro jogo, mas ganhamos os
outros cinco. E mais problemas. Salário atrasado, a gente foi jogar no
Catar, com 30 pessoas assistindo jogos. No Japão, tinha 60000.
Você conseguia dormir?
Lá [no Iraque] não. Passei mal duas vezes em Bagdá. Febre, nervoso.
Cada 100 metros tem uma barreira, metralhadora para todo lado. Começa a
ver que estourou bomba aqui, bomba lá. A gente ia aonde tinha jogo. Não
dava para treinar. Ficava perambulando. A residência era mais na
Jordânia. Passei a não falar com mais ninguém na federação. Não confiava
nem no intérprete. Me pagavam com três meses de atraso.
Já havia vivido uma situação tão ruim assim?
Não. E o que eu ficava com mais cara de babaca era a gente com
resultado, lutando por uma vaga na Copa do Mundo [o Iraque está na zona
de classificação]. E olhando os outros países, time que já tinha sido
eliminado, com 15 caras na comissão técnica. Você vai estressando.
Vê a seleção de 82 como a ideal?
O jogo contra o Ajax [em 1979] foi o único que eu, o Cerezo, o Falcão e
o Sócrates jogamos juntos, com o Sócrates de centroavante. Não sei se a
formação ideal, mas mais ideal do que a que jogou na Copa. Aquela não
tinha lado direito. Ele [Telê Santana] achou que deveria permanecer o
Serginho e um de nós ficar na direita. Só que a gente não treinou. Tem
situações que é preciso treinar a parte tática. A gente passou toda a
preparação em Portugal e nunca treinamos.
Jogo contra a França, Copa de 1986. O pênalti perdido. Era você mesmo que devia bater o pênalti?
Sempre bati os pênaltis da seleção. Se eu não bato e outro bate e
perde, seria pior. Só uma pessoa poderia não deixar bater, que era o
técnico. O Telê podia dizer: não bate. No jogo anterior, contra a
Polônia, o Sócrates era o batedor. O que sofri nesse jogo, dei pro
Careca bater. Me arrependo. Se eu bato e bato mal, não batia o outro
[risos].
A preparação daquele ano foi muito longa, começou em fevereiro de 1986...
Nunca foi necessária uma concentração daquele tamanho. No dia em que
deu o problema com o Renato e o Leandro, a gente teve folga de meio-dia
às 20h, em Belo Horizonte. O que é que eu vou fazer em Belo Horizonte
nesse tempo? Num domingo? Fiquei lá na Toca da Raposa [sede da
preparação da seleção]. Não tinha ninguém lá, nem esposa, nem filho. Fui
ver televisão. Quando voltei para São Paulo, me reuni com a comissão
técnica e pedi para não ir mais para a Copa. Fiz o pedido duas vezes:
ali e quando o Mozer foi cortado, no México. Eu tinha que me controlar
porque não podia mais apoiar meu corpo na perna esquerda. Estava com o
cruzado rompido. Não podia mais saltar, pular, cair com o apoio na
esquerda.
Na Copa da França, em 1998, você falou que a Holanda era um exemplo de como treinar uma equipe, com treinamentos específcos para cada função.
Você tem o treinador de goleiro, da defesa e o de ataque, além do
treinador geral. Dos três que treinaram, dois se tornaram grandes
treinadores — o Rijkaard e o Koeman. O Neeskens optou por ser auxiliar
do Guus Hiddink. Ele não tinha medo de que eles iriam dizer que ele não
era o treinador.
Você sofreu isso?
Eu, quando fui como coordenador da seleção em 1998, uma vez o Zagallo
veio falar comigo: “Olha, você não precisa colocar uniforme senão vão
dizer amanhã que você é o treinador”. Eu fiquei olhando pra ele e
pensando: não é possível que o Zagallo está falando isso. O Zagallo! Se
eu fosse ele, com um Zico do lado, ia utilizá-lo de qualquer maneira pra
me ajudar.
Você faria como o Falcão fez: treinar um time no Brasil?
Não.
Ser presidente do Flamengo?
Não.
Nunca mais vai se envolver com a vida política do Flamengo?
Não vou dizer nunca mais, mas eu não pretendo mais nenhum envolvimento. Oficial, claro.
Pelo trabalho físico antes de estrear pelo Flamengo e também pelo estilo de jogo, muita gente o compara com Messi. Faz sentido?
Não vejo muita semelhança. Acho que algumas jogadas se tornam parecidas
pela objetividade. O cara sempre joga pra frente, joga simples, faz
jogadas individuais. Isso pode dar certa conotação de semelhança. Mas
ele é um jogador que tem muito mais habilidade e facilidade na condução
da bola do que eu. Ele é o único cara que pode desequilibrar uma Copa.
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