Nando e os irmãos Zezé e Tunico na escolinha de futebol de Zico em Quintino (Foto: Reprodução/TV Globo) |
A casa número sete da Rua Lucinda Barbosa, em Quintino Bocaiúva, na zona norte do Rio de Janeiro já foi retratada em muitas reportagens. Lá nasceu Zico, e viveram também dois outros grandes jogadores do futebol brasileiro, e da família Antunes Coimbra: Antunes e Edu. Mas, além dos três, aquela casa ainda tem um quarto jogador, Nando, que teve a carreira bruscamente interrompida, numa história que ficou guardada por 40 anos e o Esporte Espetacular foi resgatar.
Aluno da Faculdade Nacional de Filosofia, Nando fez parte do PNA, o Plano Nacional de Alfabetização, de Paulo Freire. Por isso, foi considerado subversivo pelo regime militar, e a cada clube que chegava, recebia uma desculpa diferente para não ser escalado. Quando foi para o Belenenses, de Portugal, descobriu que estava sendo vigiado pela polícia de Salazar, e também pelos militares brasileiros. Então, decidiu voltar para o Brasil e encerrar a carreira, tentando preservar os irmãos Antunes e Edu, já consagrados, e a promessa Zico, que despontava no Flamengo.
Anos de chumbo
Em 1964 o Brasil vivia os primeiros momentos de uma ditadura militar que duraria 20 anos. Enquanto João Goulart era deposto e o marechal Humberto Castelo Branco assumia a Presidência da República, o centroavante Antunes já fazia sucesso no Fluminense. Nando, dois anos mais novo, estava dividido entre a bola e os livros. Cursava a Faculdade Nacional de Filosofia, e jogava na base do Tricolor das Laranjeiras.
- Eu e a minha irmã (Zezé) fizemos concurso para o PNA, o Plano Nacional de Alfabetização, do grande Paulo Freire. A Zezé era coordenadora e eu professor, mas foi muito rápido, porque aí entrou a ditadura e o primeiro ato no Rio de Janeiro foi extinguir o PNA e considerar todos subversivos - contou Nando.
Fernando Antunes Coimbra começou na base do Flu, mas se profissionalizou no Santos de Vitória (ES). Depois, passou pelo América e pelo Madureira, até chegar ao Ceará, onde viveu o melhor momento da carreira, em 1968. Zico se lembra da categoria do irmão:
- Ele tinha uma boa habilidade e gostava de driblar, gostava de ir para cima. A gente brincava com ele, porque tinha vezes que jogava e falava que tinha dado um show, mesmo tendo perdido por 6 a 0 - brincou o Galinho.
No Vozão, Nando recebeu uma proposta para jogar no Belenenses, de Portugal. A transferência para lá expôs o problema que acabaria com a sua carreira. O jogador vinha sendo vigiado pela ditadura militar desde quando estudava na faculdade de filosofia. A relação próxima com sua prima Cecília Coimbra fez dele um inimigo em potencial do regime. Hoje presidente do grupo Tortura Nunca Mais, Cecília foi colaboradora do MR-8, o Movimento Revolucionário Oito de Outubro.
Poucos meses após sua chegada em Portugal, Nando foi dispensado. E não pelo treinador, ou por um dirigente do clube onde jogava, mas pela Polícia Internacional e de Defesa do Estado, da ditadura de Salazar, que comandava o país.
- Chegaram já demonstrando que o que eles queriam falar comigo não era nada de futebol. Eles disseram que tinham muita informação de outras atividades minhas no Brasil. Aí já veio na cabeça, um filme passou. No dia seguinte um diretor me pressionou, sabia que eles tinham ido. Então eu falei que tinha que vir embora - contou Nando.
Volta para o Brasil, prisão e tortura
De novo no Brasil, Nando acabou preso pelo DOPS, o Departamento de Ordem e Política Social do regime militar. Ficou encarcerado por cinco dias, nos porões da Rua Barão de Mesquita, no bairro da Tijuca, no Rio de Janeiro.
- Passamos dois dias com a cara na parede, com a mão na cabeça, e o braço começava a descer e eles vinham com aquele mosquetão nas tuas costas, e xingando. Toda hora levavam a gente pra sala de tortura, de interrogatório - revelou Nando.
Seus irmãos Edu e Antunes foram para a porta da Polícia do Exército, pedindo para também serem presos. Tunico, outro irmão, lembra que um fanático por futebol foi o responsável pela liberdade de Nando:
- Coronel Homem de Carvalho foi quem mandou soltar meu irmão. O cara era América doente, e soltou o Nando por causa do Edu - lembrou Tunico.
Zico também se lembra da chegada do irmão em casa quando saiu da prisão:
- Ninguém o reconhecia, estava totalmente desfigurado. Quando ele saltou em casa, meus irmãos avisaram. Tivemos que levar os meus pais para outra casa, para não verem como o Nando estava, muito debilitado - revelou o treinador do Iraque.
Nando foi o 1º ex-jogador de futebol a ser anistiado no Brasil, em 2010 (Foto: Reprodução/TV Globo) |
Depois desse episódio, Nando ainda tentou voltar ao futebol, no Gil Vicente, de Portugal. Mas logo desistiu da carreira, para preservar os irmãos. Inclusive o caçula Zico, que já despontava na base do Flamengo.
- Eu tinha que desistir, porque o meu pavor era prejudicar a carreira deles. Mas não adiantou, porque o Edu não foi à Copa de 70 com certeza porque eu e a Zezé éramos do PNA. E Zico também foi cortado das Olimpíadas de 72 porque eu fui preso - contou Nando.
A possível interferência do governo militar na Seleção de 70 é um grande ponto de interrogação na história do futebol nacional. Três meses antes da Copa, o treinador João Saldanha foi substituído por Zagallo. Em 1969, Edu foi o artilheiro do torneio Roberto Gomes Pedrosa, o Campeonato Brasileiro da época. Mesmo eleito pela imprensa esportiva o melhor jogador da América Latina, ele não foi convocado para a Copa do Mundo.
Já Zico, apesar de ter feito o gol da classificação para as Olimpíadas de 1972, não foi convocado para os jogos de Munique.
- Eu sempre botei na minha cabeça que fui sacado por causa do futebol, não por causa desses problemas políticos. Realmente todo mundo que comandava era do exército. Era o que mandava na época - disse o Galinho.
Quarenta anos depois, a verdade sobre as duas convocações permanece incerta. Hoje coordenador da escolinha de futebol do irmão Zico, Nando conseguiu recuperar uma parte de sua história. Em 2003 entrou com um processo na comissão de anistia do Ministério da Justiça, e em dezembro de 2010 foi oficialmente considerado um perseguido político da ditadura brasileira. Fernando Antunes Coimbra é o primeiro ex-jogador de futebol anistiado no país.
- Essa garotada vive numa plena democracia. Foi uma luta se conseguir, muitos se foram, mas isso é o que ficou de melhor. Eles entenderem o que se passou e saberem dar valor a viver numa democracia - finalizou Nando.
Nenhum comentário:
Postar um comentário