O ex-jogador Pintinho ao lado de Zico, durante partida amistosa do Flamengo
- Arquivo Pessoal |
RIO - A noite de 6 de janeiro de 1990 marcou o fim de uma
dinastia no futebol brasileiro. Em um Maracanã lotado por 150 mil
apaixonados, Zico se despediu do Flamengo. No mesmo dia, o clube iniciou
uma odisseia que dura até hoje: achar o “novo Zico”. Durante o jogo
festivo, o Galinho deu o par de chuteiras que havia utilizado a um
menino de apenas 14 anos. Promessa da base rubro-negra à época, Pintinho
recebeu das mãos do camisa 10 a responsabilidade de ser o futuro craque
do clube.
Quase 25 anos depois, são raros os torcedores que se lembram
de Pintinho, sequer promovido ao time profissional. Desde então, vários
jovens que iniciaram sua carreira no campo da Gávea, e em outras partes
do país, tiveram de conviver com o peso de representar a classe e a
técnica características de Zico.
— Quem perdeu foi o Flamengo. Fui campeão 17 vezes na base
do clube e cheguei às seleções inferiores. Quando achava que seria
aproveitado no profissional, era emprestado. Fui para o Ceará, fiz 22
gols e conquistei o título estadual. Voltei para a Gávea e novamente fui
emprestado. Fiquei assim por algum tempo. Nunca me deram oportunidade. O
que fizeram comigo foi uma covardia — conta o ex-jogador, que hoje tem
38 anos e mora em São Luís do Maranhão.
Pintinho é apenas mais uma das centenas de joias que se
provaram bijuterias dentro dos gramados. Por conta da imensa pressão de
repetir os ídolos, da análise equivocada e exagerada de treinadores, da
má-fé de empresários e dirigentes ou até por puro e simples acaso,
jogadores viraram decepções com a mesma velocidade da aclamação
prematura. E, na via oposta, atletas que foram dispensados em peneiras
tiveram vida mais longa. Provando que um desgastado clichê do mundo do
futebol merece certa correção: as categorias de base do futebol
brasileiro são a verdadeira caixinha de surpresas.
Já
no início do século XXI, outro garoto surgiu como a aposta dos
dirigentes do Flamengo. Desde os 10 anos, Nélio Lopes Rodrigues era
apontado como futuro craque. Nas categorias de base, chamava atenção de
dirigentes, comissão técnica e empresários. Todos apostavam no sucesso
do meia. Em 2001, aos 17 anos, ele estreou pelo clube sob comando de
Zagallo. Mas, entre problemas extracampo e fracas atuações, Nélio aponta
o maior culpado do seu insucesso durante parte de sua carreira:
— Tudo o que aconteceu foi feito de forma correta dentro do
clube — garante. — Minha formação não pulou etapas, fui protegido, me
deram estrutura e tempo. Mas não tive paciência. Chegou um momento em
que eu achava que algumas coisas deveriam acontecer, e o clube tinha sua
posição. Tomei as decisões erradas. Entrei na Justiça contra o Flamengo
e não tinha mais ambiente ali dentro para mim. Depois disso, rodei
muito, me lesionei e ficou complicado ter um bom rendimento.
Hoje com 30 anos, Nélio chegou a integrar o elenco do Duque
de Caxias durante a disputa do Campeonato Carioca deste ano, mas deixou o
clube logo após o fim da competição. Com algumas propostas, o meia
ainda não decidiu sobre o seu futuro.
— Agora é esperar alguma coisa boa, concreta. Não vou me
aventurar a fazer algo que não seja bom. Minha situação hoje subiu na
laje — brinca, parecendo escaldado.
Os problemas citados por Nélio fazem sua história se
assemelhar a de uma das maiores promessas do futebol brasileiro de outra
geração. Nascido em Bauru, cidade onde Pelé deu os seus primeiros
chutes, Washington Luiz de Paula despontou como revelação ao chegar na
base do Guarani, de Campinas, no início da década de 1970. Os gols e as
boas atuações no clube e nas seleções de base levaram torcedores e
cronistas a compararem o meia com o Rei do Futebol, que se despedia da
seleção. Uma carga quase impossível de carregar.
Washington chamava atenção pela habilidade e a técnica.
Tanto que fora convocado para duas seleções: a principal e a olímpica,
que tentaria o ouro nos Jogos de Munique, em 1972. Ele escolheu a
seleção que viajaria à Alemanha. Para a principal, era visto como o
substituto de Pelé caso fosse deslocado para mais uma região próxima da
área. Morto em 2010, aos 57 anos, Washington teve como companheiro, na
base do Guarani, o hoje jornalista Roberto Diogo, que não economiza
elogios ao ex-parceiro de ataque.
—
Ele era diferente. Quando chegou ao Guarani, todos perceberam que tinha
um talento fora do comum. — explica. — Em Campinas, todos falavam muito
do Washington. Comparando um pouco com os dias de hoje, a esperança em
cima dele era maior do que a que depositamos no Neymar. Ele tinha muita
capacidade.
Para Roberto, problemas fora de campo e no acerto de
contratos atrapalharam o desempenho de Washington dentro das quatro
linhas, e prejudicaram o ambiente do jogador pelos clubes onde passou.
— Ele era referência aqui no Guarani. O maior problema do
Washington não foi nem a capacidade dele. Ele tinha futebol. A
dificuldade foi extracampo. Quando os dirigentes do Corinthians o
procuraram para a renovação de contrato, ele e a família pediram alto.
Naquela época era complicado. Quando não se entrava em acordo com o
clube, o jogador saia perdendo. Ele ficou por um bom tempo na geladeira.
Depois disso, foi para o Bahia, mas nunca conseguiu ser o mesmo —
lamenta Roberto Diogo.
A linha que separa os craques das decepções muitas vezes é
fina. Que o diga o atacante Alexandre Calango, dono intocável da camisa
11 dos times da base do São Cristóvão no início dos anos 1990. Ele jogou
por dois anos ao lado de um franzino camisa 9, com quem formou lendária
dupla de ataque. Seu companheiro inseparável, Ronaldo Nazário, cresceu,
apareceu, ganhou a Europa, jogou no Cruzeiro, Barcelona, Real Madrid,
Inter de Milão e Corinthians, foi campeão do mundo, artilheiro da Copa e
eleito por duas vezes o melhor do planeta pela Fifa. Enquanto isso,
Calango ficou por aqui, cumprindo carreira irregular e hoje atua pelo
modesto Tigres do Brasil, de Caxias. Na temporada de 2014, o atleta de
39 anos disputou oito partidas da série B do Campeonato Carioca. Marcou
apenas um gol. Procurado, disse que não gosta muito de tocar no assunto e
preferiu não relembrar o passado.
Já
Raymundo Quadros, que escreveu três livros sobre o São Cristóvão,
lembra muito bem da dupla. Nas categorias de base, segundo ele,
Alexandre Calango é que era fenomenal.
— É difícil dizer que ele era mais promissor, porque isso é
relativo. O Alexandre fazia mais gols do que o Ronaldo, isso é certo.
Mas o futebol é assim mesmo. Depois, Ronaldo o levou para o Cruzeiro e
para o PSV, mas acabou não dando certo, não se adaptando. O próprio
Júnior foi dispensado no Botafogo para brilhar no Flamengo. Tem também
muita gente que arrebenta na base e depois murcha — constata o
historiador, resignado, garantindo a escalação de Alexandre num time
que, entre muitos outros, tem Lenny (ex-Fluminense), Kerlon (o do drible
da foca, ex-Cruzeiro) e, mais recentemente, Jean Chera, revelado no
Santos junto com Neymar, mas que jamais conseguiu se firmar num clube.
E QUANDO MENOS SE ESPERA...
Na
outra ponta, os casos de sucesso no futebol brasileiro passam longe de
guardar um denominador comum. Alguns conseguem despontar cedo, em times
pequenos, até conseguirem um bom contrato com um grande clube. Outros
penam para sobreviver a uma peneira. O bicampeão mundial Cafu, rejeitado
em nove seletivas até ser aceito na base do São Paulo — início de uma
carreira que lhe permitiu jogar três finais de Copa do Mundo e levantar a
taça do penta —, é um dos exemplos mais famosos.
Leandro Damião joga no time daqueles que chegaram ao
estrelato com perseverança. Aos 17 anos, ainda atuava em equipes de
várzea de São Paulo. Afinal, havia sido reprovado em testes e peneiras
muitas vezes. Em 2007, agarrou uma chance e foi jogar no minúsculo
Atlético de Ibirama (SC), já pelos profissionais. Em 2009, marcou 12
gols no campeonato catarinense e chamou a atenção do Internacional, que
lhe fez uma proposta.
Damião, porém teve de dar um passo atrás. Sem ter jogado por
categorias de base, lhe faltavam alguns fundamentos básicos. No Inter,
foi integrado aos times inferiores e precisou aprender, a toque de
caixa, tudo aquilo que lhe faltou durante anos. O processo foi rápido e
já no ano seguinte integrava a equipe principal. A trajetória a partir
daí é conhecida: tricampeão gaúcho, campeão da Libertadores e da Recopa
Sul-Americana e camisa 9 da seleção brasileira na era Mano Menezes.
Hoje, está no Santos.
Natalino, pai do atleta, acompanhou a saga de perto e ouviu
vários nãos. Ele diz que o desenvolvimento do filho seria ainda melhor
se ele tivesse o aprendizado correto desde cedo.
— Creio que os dirigentes que não deram oportunidade para
ele estão arrependidos. Principalmente dos clubes paulistas. É um pouco
de incompetência, né? Ele foi levado para o Ibirama quase por acaso.
Vejo jogadores como o Neymar, que começaram a carreira desde jovens e
penso que o Damião seria até melhor do que é hoje se fosse para um clube
na idade certa.
Giovanni Nunes, responsável pela categoria de base do
Atlético de Ibirama foi o primeiro técnico de Damião no clube
catarinense. Para ele, a falta de formação adequada em grande parte dos
clubes brasileiros acaba por abreviar a carreira de bons talentos do
nosso futebol, além de prejudicar a formação de outros tantos. O
resultado, aponta ele, foi visto no Mineirão há dois meses:
— O resultado dessas avaliações aleatórias que temos no
futebol brasileiro é o 7 a 1 que sofremos na Copa. É o resultado dos
ultimos 15 anos aqui no futebol brasileiro. Na Europa, as pessoas
ensinam os garotos a jogarem, independentemente do talento que eles
apresentam desde cedo. Aqui no Brasil, o garoto nasce com o dom, vai
para a escolinha, veste a camisa de um clube e entra em campo. Em grande
parte dos casos, não existe um desenvolvimento desse garoto. Quando for
para ensinar alguma coisa, não dá mais tempo.
por Mateus Campos e Nelson Lima Neto*
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