domingo, 14 de dezembro de 2014

O acaso decisivo: avaliações erradas transformam joias da base em bijuterias do profissional

O ex-jogador Pintinho ao lado de Zico, durante partida amistosa do Flamengo - Arquivo Pessoal

RIO - A noite de 6 de janeiro de 1990 marcou o fim de uma dinastia no futebol brasileiro. Em um Maracanã lotado por 150 mil apaixonados, Zico se despediu do Flamengo. No mesmo dia, o clube iniciou uma odisseia que dura até hoje: achar o “novo Zico”. Durante o jogo festivo, o Galinho deu o par de chuteiras que havia utilizado a um menino de apenas 14 anos. Promessa da base rubro-negra à época, Pintinho recebeu das mãos do camisa 10 a responsabilidade de ser o futuro craque do clube.
Quase 25 anos depois, são raros os torcedores que se lembram de Pintinho, sequer promovido ao time profissional. Desde então, vários jovens que iniciaram sua carreira no campo da Gávea, e em outras partes do país, tiveram de conviver com o peso de representar a classe e a técnica características de Zico.
— Quem perdeu foi o Flamengo. Fui campeão 17 vezes na base do clube e cheguei às seleções inferiores. Quando achava que seria aproveitado no profissional, era emprestado. Fui para o Ceará, fiz 22 gols e conquistei o título estadual. Voltei para a Gávea e novamente fui emprestado. Fiquei assim por algum tempo. Nunca me deram oportunidade. O que fizeram comigo foi uma covardia — conta o ex-jogador, que hoje tem 38 anos e mora em São Luís do Maranhão.
Pintinho é apenas mais uma das centenas de joias que se provaram bijuterias dentro dos gramados. Por conta da imensa pressão de repetir os ídolos, da análise equivocada e exagerada de treinadores, da má-fé de empresários e dirigentes ou até por puro e simples acaso, jogadores viraram decepções com a mesma velocidade da aclamação prematura. E, na via oposta, atletas que foram dispensados em peneiras tiveram vida mais longa. Provando que um desgastado clichê do mundo do futebol merece certa correção: as categorias de base do futebol brasileiro são a verdadeira caixinha de surpresas.

Já no início do século XXI, outro garoto surgiu como a aposta dos dirigentes do Flamengo. Desde os 10 anos, Nélio Lopes Rodrigues era apontado como futuro craque. Nas categorias de base, chamava atenção de dirigentes, comissão técnica e empresários. Todos apostavam no sucesso do meia. Em 2001, aos 17 anos, ele estreou pelo clube sob comando de Zagallo. Mas, entre problemas extracampo e fracas atuações, Nélio aponta o maior culpado do seu insucesso durante parte de sua carreira:
— Tudo o que aconteceu foi feito de forma correta dentro do clube — garante. — Minha formação não pulou etapas, fui protegido, me deram estrutura e tempo. Mas não tive paciência. Chegou um momento em que eu achava que algumas coisas deveriam acontecer, e o clube tinha sua posição. Tomei as decisões erradas. Entrei na Justiça contra o Flamengo e não tinha mais ambiente ali dentro para mim. Depois disso, rodei muito, me lesionei e ficou complicado ter um bom rendimento.
Hoje com 30 anos, Nélio chegou a integrar o elenco do Duque de Caxias durante a disputa do Campeonato Carioca deste ano, mas deixou o clube logo após o fim da competição. Com algumas propostas, o meia ainda não decidiu sobre o seu futuro.
— Agora é esperar alguma coisa boa, concreta. Não vou me aventurar a fazer algo que não seja bom. Minha situação hoje subiu na laje — brinca, parecendo escaldado.
Os problemas citados por Nélio fazem sua história se assemelhar a de uma das maiores promessas do futebol brasileiro de outra geração. Nascido em Bauru, cidade onde Pelé deu os seus primeiros chutes, Washington Luiz de Paula despontou como revelação ao chegar na base do Guarani, de Campinas, no início da década de 1970. Os gols e as boas atuações no clube e nas seleções de base levaram torcedores e cronistas a compararem o meia com o Rei do Futebol, que se despedia da seleção. Uma carga quase impossível de carregar.
Washington chamava atenção pela habilidade e a técnica. Tanto que fora convocado para duas seleções: a principal e a olímpica, que tentaria o ouro nos Jogos de Munique, em 1972. Ele escolheu a seleção que viajaria à Alemanha. Para a principal, era visto como o substituto de Pelé caso fosse deslocado para mais uma região próxima da área. Morto em 2010, aos 57 anos, Washington teve como companheiro, na base do Guarani, o hoje jornalista Roberto Diogo, que não economiza elogios ao ex-parceiro de ataque.
— Ele era diferente. Quando chegou ao Guarani, todos perceberam que tinha um talento fora do comum. — explica. — Em Campinas, todos falavam muito do Washington. Comparando um pouco com os dias de hoje, a esperança em cima dele era maior do que a que depositamos no Neymar. Ele tinha muita capacidade.
Para Roberto, problemas fora de campo e no acerto de contratos atrapalharam o desempenho de Washington dentro das quatro linhas, e prejudicaram o ambiente do jogador pelos clubes onde passou.
— Ele era referência aqui no Guarani. O maior problema do Washington não foi nem a capacidade dele. Ele tinha futebol. A dificuldade foi extracampo. Quando os dirigentes do Corinthians o procuraram para a renovação de contrato, ele e a família pediram alto. Naquela época era complicado. Quando não se entrava em acordo com o clube, o jogador saia perdendo. Ele ficou por um bom tempo na geladeira. Depois disso, foi para o Bahia, mas nunca conseguiu ser o mesmo — lamenta Roberto Diogo.
A linha que separa os craques das decepções muitas vezes é fina. Que o diga o atacante Alexandre Calango, dono intocável da camisa 11 dos times da base do São Cristóvão no início dos anos 1990. Ele jogou por dois anos ao lado de um franzino camisa 9, com quem formou lendária dupla de ataque. Seu companheiro inseparável, Ronaldo Nazário, cresceu, apareceu, ganhou a Europa, jogou no Cruzeiro, Barcelona, Real Madrid, Inter de Milão e Corinthians, foi campeão do mundo, artilheiro da Copa e eleito por duas vezes o melhor do planeta pela Fifa. Enquanto isso, Calango ficou por aqui, cumprindo carreira irregular e hoje atua pelo modesto Tigres do Brasil, de Caxias. Na temporada de 2014, o atleta de 39 anos disputou oito partidas da série B do Campeonato Carioca. Marcou apenas um gol. Procurado, disse que não gosta muito de tocar no assunto e preferiu não relembrar o passado.

Já Raymundo Quadros, que escreveu três livros sobre o São Cristóvão, lembra muito bem da dupla. Nas categorias de base, segundo ele, Alexandre Calango é que era fenomenal.
— É difícil dizer que ele era mais promissor, porque isso é relativo. O Alexandre fazia mais gols do que o Ronaldo, isso é certo. Mas o futebol é assim mesmo. Depois, Ronaldo o levou para o Cruzeiro e para o PSV, mas acabou não dando certo, não se adaptando. O próprio Júnior foi dispensado no Botafogo para brilhar no Flamengo. Tem também muita gente que arrebenta na base e depois murcha — constata o historiador, resignado, garantindo a escalação de Alexandre num time que, entre muitos outros, tem Lenny (ex-Fluminense), Kerlon (o do drible da foca, ex-Cruzeiro) e, mais recentemente, Jean Chera, revelado no Santos junto com Neymar, mas que jamais conseguiu se firmar num clube.

E QUANDO MENOS SE ESPERA...
Na outra ponta, os casos de sucesso no futebol brasileiro passam longe de guardar um denominador comum. Alguns conseguem despontar cedo, em times pequenos, até conseguirem um bom contrato com um grande clube. Outros penam para sobreviver a uma peneira. O bicampeão mundial Cafu, rejeitado em nove seletivas até ser aceito na base do São Paulo — início de uma carreira que lhe permitiu jogar três finais de Copa do Mundo e levantar a taça do penta —, é um dos exemplos mais famosos.
Leandro Damião joga no time daqueles que chegaram ao estrelato com perseverança. Aos 17 anos, ainda atuava em equipes de várzea de São Paulo. Afinal, havia sido reprovado em testes e peneiras muitas vezes. Em 2007, agarrou uma chance e foi jogar no minúsculo Atlético de Ibirama (SC), já pelos profissionais. Em 2009, marcou 12 gols no campeonato catarinense e chamou a atenção do Internacional, que lhe fez uma proposta.
Damião, porém teve de dar um passo atrás. Sem ter jogado por categorias de base, lhe faltavam alguns fundamentos básicos. No Inter, foi integrado aos times inferiores e precisou aprender, a toque de caixa, tudo aquilo que lhe faltou durante anos. O processo foi rápido e já no ano seguinte integrava a equipe principal. A trajetória a partir daí é conhecida: tricampeão gaúcho, campeão da Libertadores e da Recopa Sul-Americana e camisa 9 da seleção brasileira na era Mano Menezes. Hoje, está no Santos.
Natalino, pai do atleta, acompanhou a saga de perto e ouviu vários nãos. Ele diz que o desenvolvimento do filho seria ainda melhor se ele tivesse o aprendizado correto desde cedo.
— Creio que os dirigentes que não deram oportunidade para ele estão arrependidos. Principalmente dos clubes paulistas. É um pouco de incompetência, né? Ele foi levado para o Ibirama quase por acaso. Vejo jogadores como o Neymar, que começaram a carreira desde jovens e penso que o Damião seria até melhor do que é hoje se fosse para um clube na idade certa.
Giovanni Nunes, responsável pela categoria de base do Atlético de Ibirama foi o primeiro técnico de Damião no clube catarinense. Para ele, a falta de formação adequada em grande parte dos clubes brasileiros acaba por abreviar a carreira de bons talentos do nosso futebol, além de prejudicar a formação de outros tantos. O resultado, aponta ele, foi visto no Mineirão há dois meses:
— O resultado dessas avaliações aleatórias que temos no futebol brasileiro é o 7 a 1 que sofremos na Copa. É o resultado dos ultimos 15 anos aqui no futebol brasileiro. Na Europa, as pessoas ensinam os garotos a jogarem, independentemente do talento que eles apresentam desde cedo. Aqui no Brasil, o garoto nasce com o dom, vai para a escolinha, veste a camisa de um clube e entra em campo. Em grande parte dos casos, não existe um desenvolvimento desse garoto. Quando for para ensinar alguma coisa, não dá mais tempo.
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